Mulher, negra, Rute Miriam Albuquerque dedicou 34 anos à educação pública catarinense. Acreditando na pluralidade das ideias, na defesa inconteste dos direitos, ela é militante na causa das infâncias negras e suas peculiaridades, reivindicando visibilidade.
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“Sempre tive vontade de ser professora. Pequenininha, meus tios, irmão mais velho e avó diziam que eu seria professora de Português, porque eu gostava de falar corretamente. Um de meus passatempos era abrir o dicionário em páginas aleatórias e descobrir palavras novas”, conta Rute, logo no início de nossa conversa.
E o destino não poderia ser diferente, Rute formou-se no Magistério em 1987. Mas somente em 2001, quando desenvolvia um projeto com crianças na Escola de Educação Básica (EEB) Jurema Cavallazzi, em Florianópolis, que a professora, negra, despertou para a consciência de classe, de cor e de raça.
Rute conta que só foi adquirir consciência de cor quando desenvolvia um projeto sobre as características açorianas da ilha de Florianópolis. Por conta desse projeto, a professora levava artistas e escritores para conversar com as crianças em sala de aula. Durante uma dessas conversas, o convidado falava sobre as características dos açorianos, a cultura e a herança deixada por eles.
“Foi quando um menino se levantou e disse: “Eu não sou esse negócio aí de açoriano, eu sou outra coisa, lá em casa nós somos outra coisa” (apontando para o próprio braço), indicando a cor de sua pele. Era um braço negro, de um menino negro, que tinha 8 anos na época. Naquele momento uma flecha atingiu meu coração e a partir de então, passei a me enxergar como mulher negra”, relembra a professora.
Aquele dia não só ficou marcado na vida de Rute como se transformou em um divisor de águas para a professora, que passou a olhar a invisibilidade da classe negra como algo urgente e que precisava ser trabalhado em sala de aula e discutido na sociedade.
Foi aí que surgiu, em 2006, o projeto Malungo- termo iorubá que significa companheiro de viagem. Idealizado pela professora, o projeto iniciou exatamente na época em que a Secretaria de Estado da Educação (SED) estava implantando a formação em Educação para as relações Étnico-raciais (ERER).
“Eu passei a ler tudo sobre educação das relações étnico-raciais, comecei a ler literatura africana, afro-brasileira, e fui abrindo os olhos para perceber que a criança negra – maioria dos estudantes, naquela escola – não era tratada em sua especificidade”, conta Rute.
O projeto Malungo estava alicerçado em três pilares: arte, apropriação da cidade, militância pedagógica. Com o objetivo de afrobetizar as crianças do segundo ano do Ensino Fundamental da escola Jurema Cavallazzi, o projeto acabou se estendendo a todas as turmas dos anos iniciais, e várias turmas dos anos finais.
Durante anos, o projeto proporcionou aos estudantes o conhecimento sobre a literatura afro-brasileira, produção textual, confecção de cartas/relatos para o intercâmbio com a Escola em Angola, produções artísticas (como produção de máscaras africanas, pintura de camisetas), somadas a outras atividades.
Entre estudantes, familiares e colaboradores, foram aproximadamente mil pessoas envolvidas com o projeto Malungo, que permaneceu ativo até 2012, quando a professora se desligou da escola.
“Cada criança espalhou seus conhecimentos aos familiares, cada professor e professora que respirava conosco as muitas tarefas e compromissos, também contagiava sua família e esta corrente do bem foi se espalhando. Se aquele menino não tivesse tido a coragem de desafiar a nosso convidado, mostrado o seu bracinho negro, num protesto tão infantil e tão profundo, nada disso teria existido!”, relembra, emocionada.
Hoje com 53 anos de idade, Rute está aposentada, mas a vontade de despertar a consciência e combater o racismo continuam fortes nela. Para ela, o dia 20 de novembro é uma data importantíssima, mas insuficiente devido às demandas impostas por uma sociedade classista, sexista, homofóbica e, especialmente, racista.
“Ainda ouvimos coisas absurdas do tipo: mas é o próprio negro que é racista; ou ainda quando a pessoa branca, ignorante de seus privilégios, desconhecendo os malefícios produzidos nas mentes e corações negros, reivindica para si o “racismo branco”. São inúmeros os exemplos de manifestação racista, entre crianças, adolescentes e profissionais. E combater o racismo é antes de mais nada, admitir que ele existe, e que se camufla, para se fortalecer”, diz.
Rute é daquelas mulheres fortes. Professora, negra, que não se contenta em despertar a consciência, ou combater o racismo em apenas um único dia do ano. Para ela, as apresentações artísticas envolvendo a cultura africana ou afro-brasileira não são suficientes para reparar séculos de prejuízos.
“Quando nos deparamos com manifestações artísticas, mobilizamos a fruição, o prazer, sem gerar consciência. Comemorar o 20 de novembro é muito mais do que bater palmas quando a apresentação acaba. É se comprometer com as mudanças que os novos tempos exigem. Não somos iguais. Somos todos diferentes e esta diferença nos torna únicos, portanto, tremendamente valorosos”, conclui.